Carta ao EDITOR
Cistite glandular uma condição benigna rara que se apresenta como pseudo-tumor da bexiga
Anuar Ibrahim Mitre; Carlos Alberto Paes Silveira; Kátia Ramos Moreira Leite; Affonso Celso Piovesan
Departamento de Urologia, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – São Paulo/SP, Brasil. Email: [email protected]
INTRODUÇÃO
Existem condições que simulam tumores vesicais do ponto de vista da manifestação clínica, imagens e achados endoscópicos. Uma delas, a cistite glandular devido à inflamação da lâmina própria e proliferação do epitélio por invaginação, pode causar alterações macroscópicas sugestivas de uma neoplasia. Não há recomendação terapêutica devido ao pequeno número de casos que já foram publicados anteriormente e porque sua etiopatogenia é desconhecida. Relatamos como foi feito o diagnóstico de cistite glandular, assim como a estratégia de tratamento.
CASE APRESENTAÇÃO E GESTÃO
Um homem de 28 anos, branco, tinha sido submetido à ultra-sonografia, que revelou uma irregularidade no assoalho vesical (Figura 1). Queixou-se de sintomas de obstrução e irritação por micção sem hematúria. O exame de urina estava normal. Ao exame rectal digital, foi detectada uma massa sólida acima da próstata entre o recto e a bexiga. A tomografia computadorizada confirmou os achados da ultra-sonografia e além disso revelou ectasia ureteral bilateral (Figura 2). O paciente foi submetido à ressecção endoscópica de um tumor sésseis na uretra prostática, colo vesical, trígono e porções das paredes laterais da bexiga. O exame histológico revelou cistite cística glandular com extensas áreas apresentando um padrão entérico, sem sinais de malignidade (Figura 3). A ultra-sonografia do trato urinário realizada 2 meses após a cirurgia mostrou espessamento vesical e irregularidade na área do assoalho vesical, mas sem dilatação ureteral bilateral. Em outro procedimento endoscópico, ressecamos novamente o tecido vegetante encontrado na área do trígono, colo vesical e uretra prostática. O exame histológico confirmou o diagnóstico de cistite glandular.
Devido à recorrência do tecido pseudo-tumoral, e na ausência de um curso terapêutico pré-estabelecido, decidimos tratar a condição com BCG intravesical (bacilo Calmette-Guerin) com uma aplicação semanal para um total de 8 doses, começando 2 meses após a última ressecção endoscópica.
O controle ultrassonográfico após um ano indicou uma leve dilatação uretero-localiceal, mais pronunciada na ureter distal direita, e um espessamento da parede da bexiga.
Uma nova ressecção da irregularidade da mucosa do colo vesical e trigônio vesical revelou cistite glandular. O paciente foi submetido a outra série de tratamentos com BCG.
Dois anos mais tarde a paciente não apresentou queixas de anulamento, o fluxo urinário foi melhor do que antes, e as ejaculações foram normais.
Culturas de urina e citologia urinária estavam normais. A cistoscopia mostrou urotélio irregular no colo vesical e trigônio, e a biópsia destas áreas não revelou os achados anormais anteriores.
DISCUSSÃO
As alterações metaplásicas do epitélio vesical transitório na cistite glandular estão bem documentadas na literatura, embora a etiologia ainda não esteja completamente esclarecida.13 Acredita-se que a cistite glandular seja devida à inflamação crônica da lâmina propria possivelmente resultante da exposição prolongada a agentes irritantes.
Inflamação crônica da lâmina própria causa proliferação do epitélio resultando em invaginação, com formação de ninhos, criptas e, em alguns casos, glândulas entéricas reais. Pode ser precedida ou associada a outras lesões não-neoplásicas proliferadoras como ninhos de Von Brunn, cistite cística, cistite folicular e cistite polipoide.
Não como a cistite glandular, a cistite polipoide surge da proliferação extrínseca do epitélio acima da lâmina propria, com formação de pequenas projeções vilosas. Ela pode permanecer como um processo benigno por anos, ou pode se tornar um crescimento autônomo e produzir um tumor papilar invasivo sólido.3
Amostras de autópsia incessantes, Morse4 concluiu que estas alterações epiteliais são mais comuns em pessoas acima de 20 anos e que provavelmente estariam relacionadas a inflamações crônicas do trato urinário,2,5 como pode ser observado na esquistossomose.6
Uma outra hipótese etiológica é baseada em remanescentes embrionários que se originam no seio urogenital, levando à formação de glândulas entéricas reais, com ou sem conteúdo mucoso na bexiga. Metaplasias da mucosa vesical também podem resultar de restos embrionários de pele (metaplasia escamosa), ou de um rim primitivo (adenomas nefrogênicos).2
Alguns autores consideram a cistite glandular uma curiosidade histológica sem qualquer significado clínico.1 No entanto, a grande maioria considera tratar-se de uma lesão pré-maligna com correlação histológica precoce com tipos menos comuns de neoplasias vesicais.2,58 A frequente associação dessas lesões proliferativas com carcinomas in situ ou com neoplasias invasivas reforça a hipótese de que a cistite glandular é uma lesão pré-cancerígena.8
A associação de cistite glandular com lipomatose pélvica tem sido descrita.9
Recontando o risco de cistite glandular progredir para malignidade, existem estudos que demonstram uma correlação entre a reatividade do anticorpo mAbDas 1 com adenocarcinoma mucinoso colunar e metaplasia glandular.10 Este marcador pode ser útil para determinar o risco de progressão para malignidade da metaplasia intestinal.
No caso diagnosticado incidentalmente que estamos relatando atualmente, a cistite glandular apresentou-se como uma lesão pseudo-tumoral. Devido à recorrência das lesões e das possíveis correlações com uma neoplasia maligna, optamos por realizar ressecções endoscópicas e, após o procedimento, tratar a condição com BCG intravesical até que estas alterações histológicas desaparecessem.
2. Erturk E, Erturk E, ScheinfeldJ, Davis RS. Cistite metaplásica complicada com ninhos de Von Brunn, cistite cística e metaplasia glandular do tipo intestinal. Urologia. 1988;32:165-7.
3. Mostofi FK. Potencialidades do epitélio da bexiga. J Urol. 1954;71:705-14.
4. Morse H.D. A etiologia e patologia da pielite cística, ureterite cística e cistite cística. Am J Pathol. 1928;4:33.
5. Kittredge WE, Collett AJ, Morgan C. Adenocarcinoma da bexiga associado à cistite glandularis: relato de caso. J Urol. 1964;91:145.
6. Salmão, R. Neoplasia da bexiga e cistite cística. Br J. Urol. 1967;39:67-72.
7. Blake J. Alterações proliferativas na mucosa vesical e carcinoma in situ. Br J Urol. 1967;39:181-5.
8. Shaw JL, Gislason G J e Imbriglia JE. Transição da cistite glandular para adenocarcinoma primário da bexiga. J Urol. 1958;79:815-22.
10. Murphy DP, Pantuck AJ, Amenta PS, Das KM, Cummings KB, Keeney GL, et al. Adenocarcinoma uretral feminino: evidência imunohistoquímica de mais de 1 tecido de origem. J Urol. 1999;161:1881-4.